quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quando os olhos traem




Maria Fernanda fechou os olhos por aproximadamente vinte segundos e os abriu deparando-se com um teto espelhado a refletir dois corpos nus saciados de tanto desejo.
Ainda respirava ofegante refletindo sobre os porquês daquilo tudo... Estar ali naquele momento representava a quebra de um silêncio  ao qual sua vida parecia fadada a terminar, um silêncio quebrado por descobertas das quais nunca esperou vivenciar.
Olhando nos olhos daquele homem que ela mal conhecia dava asas à memória que se rebelava dentro de sua consciência gritando os  dolorosos dias vividos por descobrir que o seu mundo desmoronara desfacelando todos os pequenos valores que um dia chegou a acreditar.
Descobrira que seu noivo a traíra com sua melhor amiga debaixo de seu nariz. Ela que mesmo não tendo grandes certezas a respeito de seus sentimentos dentro do relacionamento, nunca ousara perder o fio de sua condição de mulher independente que numa luta ideológica feminista ainda dava crédito a valores como amor e amizade, buscando assim uma espécie de idealização que pudesse alimentar impulsos em prol daquilo que a sociedade "média" chamaria de sublime.
Estar nua com aquele homem era nítido fruto de sua revolta... Seu corpo se rebelava por ser explicitamente expulso da rede segura da qual vivera por vinte e cinco anos de sua vida... Suas crenças eram agora questionadas com ódio e densas lágrimas que num esforço por não declinar se armavam como flechas atirando para todos os lados com o objetivo de mostrar para si que a vida poderia ainda valer a pena de alguma forma.


Deus já não aparecia em seus pensamentos e seus livros foram jogados no lixo por não acrescentarem mais anseio a crença de que o mundo poderia se tornar menos hostil, menos pesado.
--- Você tem um corpo delicioso --- Disse aquele homem casado que nem sequer conversou sobre sua vida conjugal com ela, deitado sobre a cama com forma de coração.
Aquele comentário foi correspondido com um pequeno sorriso amarelo que em seu intimo camuflava em si o desprezo.
O que ela aprendeu a fazer muito bem nos útimos dias foi a desprezar os outros. Pois se antes, seu medo do desamparo e sua vaidade a conduziam  a projetar nos outros a base para uma vida substancial; hoje, via que ao contrario de suas antigas idealizações, os outros nada tinham a lhe oferecer o que não fosse satisfações de desejos egocêntricos. Não via mais sentidos numa sociedade movida pelo preço e hipocrisia.
Deixou aquele homem de comentários pífios no ponto de ônibus mais próximo do motel, logo que ele não tinha automóvel próprio.
--- Então tá --- Disse o homem --- Vamos combinar algo mais escondido da próxima vez, pois estou achando que minha mulher anda desconfiada sobre nós.
Fingindo ligar para o comentário, Maria Fernanda despediu-se seguindo seu caminho para casa numa tenebrosidade nos olhos que se recusavam a derrubar um pingo d’água.
Ao chegar sentiu um alivio por conseguir estar em casa sobrevivendo a mais um dia em meio a tanta dor e angústia. Ligou o chuveiro na água gelada se molhando por completo sem pensar duas vezes a respeito de um provável choque térmico, sentia nojo de si mesma, se auto desprezava e machucava com a dor no peito por ter sido cega por tanto tempo a ponto de não conseguir dar um passo que não fosse à depressão. Não suportava ser vítima de seus próprios sonhos, sonhos que jamais fez questão de acordar, forçada agora a sentir a tempestade da realidade, jogada a força para fora de seu próprio paraíso antes idealizado.
Tantos planos, tantos objetivos, tantos passos...  e hoje se encontrava no abismo de existir sem um sentido que pudesse aflorar alguma cor em sua vida.
Dormiu... sem dar por conta que em seu sono profundo as lágrimas densas dissolviam-se transbordando a dor a qual estava submersa...


O que seria rancor afinal? Segurar o choro e satisfazer o sexo em prol de uma vingança tão mesquinha? O que representava aqueles sete homens com quem dormira nos últimos três meses?
Talvez fosse o medo... O medo da chuva... O medo de se molhar...
Enquanto vivia a segurança do relacionamento com seu ex noivo, de seu trabalho e seus estudos sentia que nada pudesse lhe faltar, como se tudo estivesse em seu devido lugar. Porém, agora sem ter algo para se agarrar e dizer que era seu, vivia o trauma de não ter e o desespero por não poder.

Ao chegar no serviço na manhã seguinte, logo foi chamada a comparecer na sala de seu chefe.
Ao entrar percebeu uma atenção especial no olhar daquele homem comumente indiferente, mas que agora a olhava nos olhos solicitando para que sentasse.
--- Olá Maria Fernanda, tudo bem com você? --- Disse aquele homem de mais ou menos cinqüenta anos.
--- Sim, está tudo bem.
--- O que está acontecendo? --- Questionou o chefe.
O tom sereno da voz a fez corar por não entender do que se tratava afinal aquela pergunta.


--- O que o senhor quer dizer com isso? --- Disse intrigada.
--- Quero saber o que vem acontecendo com você... Anda diferente nos últimos meses, os relatórios atrasados, a desatenção com os clientes. Você não costuma ser assim, percebo uma mudança muito brusca em sua conduta aqui dentro da empresa.

“O que aquele homem queria? Onde desejava chegar? Talvez fosse apenas uma curiosidade de chefe”. Toda uma série de reflexões se passou pela mente de Maria Fernanda por visualizar de repente naquele homem uma espécie de escape para sua melancolia, afinal, se atraiu por ele em outras situações inusitadas quando ainda era noiva, e agora nada havia que pudesse impedir que utilizasse seus poderes de sedução para desviar o foco daquela estranha conversa e proteger seu emprego.

--- Só estou um pouco cansada nos últimos dias, deve ser isso --- Disse Maria Fernanda a cruzar as pernas num leve molhar de lábios.

Mesmo estando mais atencioso que o comum, o chefe pareceu não se atrair pelos gestos.

--- Sabe, você é uma das minhas melhores funcionárias e me preocupo muito caso algo esteja atrapalhando em seu rendimento dentro da empresa. Caso queira conversar, estarei à disposição.

De volta a sua sala, Maria Fernanda eufórica percebeu o quanto aquele momento estava a prejudicando  e interferindo em sua vida, chegando a ter reflexos até no seu lado profissional. “O que dizer para o chefe? A verdade? Dizer que meu mundo desabou por descobrir que meu noivo me traiu e que não era aquilo tudo o que eu esperava? Dizer que minha amiga é uma vagabunda?... não!!! Isso não deveria passar pela minha cabeça... Mas com quem conversar?”
Sentia-se sozinha e sem vontade de sair com os antigos amigos, não pensava em voltar para a casa dos pais, saíra de lá para morar com o ex noivo, voltar seria uma humilhação.
“como uma mulher que leu Brecht, Balzac e Strauss consegue ser tão orgulhosa e não ter o poder de fazer sua própria faxina psicológica?" Nunca poderia pensar que por trás daquela mulher forte e sonhadora existisse um profundo mar de fragilidade.
“Acho que vou me abrir com meu chefe, afinal o que tenho a perder? Um homem que sai do estacionamento com um livro do Nietzsche debaixo do braço talvez tenha algo a mais para oferecer além de uma mísera satisfação sexual”.

Ligou no ramal dele. Tocou duas vezes até que ele atendeu.
--- Quem é?
--- É a Maria Fernanda, acho que podemos conversar, ou melhor, será que posso conversar contigo referente ao assunto que abordou? --- Disse com a voz baixa e trêmula.

Um pequeno silêncio até que ele a chamou até a sala.


--- Sente-se.
Sentou-se constrangida com as mãos unidas sobre as pernas que dessa vez optaram por não se cruzarem.
--- Vamos lá... O que há Maria Fernanda? Realmente a percebo diferente, nem ficando nas festas da empresa tem ficado mais. Sinto falta de conversar com você, é difícil encontrar pessoas com gosto intelectual tão refinado.
Ela o olhou  nos olhos e percebeu que aquela expressão já não era de alguém indiferente, aquele elogio sutil a fez sentir-se um pouco mais a vontade.
--- É, tenho realmente estado péssima ultimamente, meu mundo... Sei lá, não sei se é algo para dizer assim, desse jeito...
--- Pode dizer, não tenha receio, o que puder fazer para ajudá-la irei fazer.
--- Sabe, meu mundo parece ter virado de pernas pro ar. --- Disse virando o rosto de lado olhando o chão de madeira perfeitamente encerado.
--- Mas é algo relacionado a família, ao trabalho, ao que?
Maria Fernanda olhou as unhas por fazer segurando o impulso por alguns segundos.
--- Sabe quando nada mais faz sentido? Consegue mensurar quando as nuvens não te permitem mais ver o sol no horizonte? Sabe quando nada, nem ninguém conseguem oferecer algo que lhe valha um sorriso sincero?

O chefe desencostou de sua cadeira de couro e debruçou sobre a mesa mantendo a mão direita no queixo. Sua postura denunciava percepção com um olhar estranho, analítico e presunçoso. Maria Fernanda naquela dimensão já não estava ligando para as tensões profissionais de comportamento que costumava ter frente ao chefe e se recostou em sua cadeira deixando os braços cruzados e as pernas soltas. Não precisava se preocupar, pois não estava de saia.
--- Mas o que aconteceu para chegar a esse estado? Me diz.
--- Meu mundo, minhas aspirações, meus sonhos.
--- Te machucaram?
--- Sim.
--- E está doendo?
--- Sim, dói, dói muito...
Uma lágrima despencou no precipício de seu rosto pálido.

O chefe respirou, espreguiçando-se numa forma de fragmentar o que ouvia.
--- E todas aquelas convicções? Você sempre recitou opiniões fortes a respeito de como uma mulher deveria lidar com as dificuldades e situações que se apresentam em vossas vidas. Trocamos idéias certa vez, você não se lembra?
--- Sim, mas parece que sumiram, evaporaram e devem ter virado tempestades em cima de mim mesma. Fui traída...
Mais uma vez o silêncio se fez presente e o chefe não se mexeu... O telefone tocou repetidas vezes sem ser atendido.

--- Será que você foi machucada ou será que foi você mesma que se machucou?
Perdida em seu desabafo com um olhar longe, presa no passado, Maria Fernanda questionou. --- O que quer dizer com isso?
--- Quero dizer que ouvi você afirmar que foi machucada por uma espécie de traição, mas me parece ingênuo colocarmos assim, dessa maneira.

Ela descruzou os braços o olhando na face como que absorvendo o impacto de uma visão diferente sobre as coisas. Estava sendo contestada por aquele homem que sempre se portou convencionalmente sem dar indícios de sua forma de pensar o mundo e as coisas.
--- A dor que sinto não me parece ingênua. É real dentro de mim.
--- Sentimento nenhum é ingênuo, ingênuas talvez sejam as celas que construímos para aprisioná-los. Uma hora a rebelião tem que acontecer. ---  O chefe assumia uma postura homogênea de amizade como quem diz coisas para alguém que conhece há muito tempo.
--- Tudo o que acreditei e projetei se desfez sem que eu pudesse ter o controle, em um minuto minha paz que sempre consegui manter com tanto custo dentro de meus raciocínios deu lugar ao terror e a angústia... Rebelo-me contra mim mesma. --- Maria Fernanda se abria sem bloqueios, eram verdades por verdades independente dos efeitos que tudo aquilo poderia gerar, a coisa mais importante agora era sua existência.
--- Talvez esteja se culpando por ter acreditado em valores aparentemente bem estruturados.
--- Acho que se o nome é culpa, então deve ser isso...
O chefe mexeu na chave de sua gaveta, olhou para o sapato e decidiu que não deixaria uma pessoa passar por sua vida pedindo ajuda a deixando ir embora sem expressar seus verdadeiros pensamentos, vira pessoas demais penando por falta de panoramas, por egoísmo de intelecto... Maria Fernanda representava uma flor em meio ao jardim que morria por falta de água e algo teria de ser feito.
--- Sabe, Maria Fernanda, as crenças no fim das contas são piadas bem contadas.
O ar indiferente voltou a reinar na expressão do chefe, que se recostou suavemente em sua poltrona com os braços cruzados a olhar as paredes cor de pele que decoravam sua sala.
--- Somos ensinados a acreditar desde pequenos... a família, a sociedade, o mundo nos ensina a crer... --- deu uma pausa --- A crer que algo nos fará bem ou que algo possa nos fazer mal. Tudo nessa vida gira em torno da crença, já parou para pensar nisso? Até aqueles mais desapegados acreditam que o desapego no fundo trará algo frutífero no fim das contas.

Maria Fernanda começou a se identificar com as palavras que ele usava, elas a estavam levando a um grau de espanto que fazia sentir-se viva... morrendo, mas viva.
--- Acho que crer deva ser uma doença. --- Disse anestesiada pelas memórias que se conflitavam ao presente dentro daquela sala.

--- Viver é que talvez seja a doença... Se olharmos a vida no fundo de seus olhos veremos que não existe nada além de medo. O medo é o nosso instinto primário... Veja uma criança Fê, ela abre os olhos vislumbrando-se com o céu, olha ao redor rindo de tudo que a circula até sentir-se sozinha em seu próprio paraíso, vê-se então na selva... Eis a consciência... nada além de desamparo clamando por apegos gerando o medo de não voltar pro paraíso de antes, medo de não sobreviver por saber que é preciso mexer-se para viver... Daí então o desejo... e sabe qual a primeira tolice do ser humano? É achar que o desejo  é seu real instinto, é achar que não há nada por trás de seus desejos... O desejo é uma brincadeira da qual inventamos variadas formas de satisfazê-lo.
--- Somos mimados demais. --- disse Maria Fernanda sussurrando perpetrada num mundo estranho de reflexões longínquas para fora de sua própria imaginação.
--- Isso Fê!!! Mimados!!! Você acha que meu real desejo é ser chefe de uma empresa capitalista que não tem nada a ver com meus dons e forças? Você acha que desejo se resume a dinheiro e a valores socialmente pré estabelecidos? Somos incentivados a pensar dessa maneira...
--- E o que somos no fim das contas? --- Quase não se dava para ouvir a voz daquela garota.
--- Bebês desamparados medrosos da morte e conseqüentemente desejantes de vida, idealizadores em potencial das mais variadas peripécias que nos afastam viciosamente da verdade que é a dor de se viver. Você realmente acha que esse momento não faz nenhum sentido? Talvez você nunca tenha vivido algo tão verdadeiro como agora.
Retraída em sua própria figura, Maria Fernanda voava pela sala, esquecia-se dos livros, da profissão, das pessoas...
 --- Eu só queria estar segura, realizar meus objetivos --- ronronava em seu universo particular.
 --- E quando não conseguiu, veio então achar que a vida não era pra você, que os outros são os errados e você é a incompreendida?... É duro quando a natureza estraçalha nossa vaidade não é mesmo? Dá vontade de sumir. É como se fossemos descobertos em nossos esconderijos seguros e quentinhos. Traição é uma palavra muito forte, será que os outros são os verdadeiros culpados por não se encaixarem em sua idealização de mundo perfeito? Será que seu dedo apontado dizendo que eles são os desonestos não quer dizer que toda aquela convicção da qual gozava não passava de escudos contra a realidade de sua própria natureza?
--- hmmm, O medo. --- Disse ela a completar a recitação do chefe. --- Parece que perdi muito tempo, sinto que a vida me impediu de ser quem eu realmente queria ser. Será que se tudo tivesse transcorrido de outra maneira e meu ex noivo me amasse de verdade eu não precisaria estar aqui a tagarelar minhas mesquinharias à você?

O chefe se levantou lentamente e dirigiu-se até a porta, trancou-a seguindo até a janela apreciando o mar de prédios frente a ele.
--- Você queria ser? Queria ser está no futuro, não está? Sempre te observei com livros de romance, sociologia, comunicações... Percebi sempre gestos e atitudes voltadas para os outros... --- Ponderou por um momento e continuou. --- Não estou aqui a criticar sua cultura, mas sim a oferecer uma perspectiva de quem é você agora sem as coisas que achamos que nos completam... Ideologias, relações familiares e de amizades, sem tudo isso quem sou eu? Quem é você?
--- Por muito tempo pensei não ser nada sem essas coisas... Ainda me sinto perdida e incompleta sem esses apegos.
--- Talvez sim, mas essa é nossa verdadeira condição, estamos sós o tempo todo e tudo que nos apegamos parece instrumento supridor de nossas ausências, não parece? O medo da solidão nos faz querer amigos, nos faz buscar nos outros algo que aqueça um frio dentro da gente que nem procuramos entender. --- Ele foi até a cadeira e apoiou as mãos sobre os ombros de Maria Fernanda. --- Essa dor reflete de sua ingenuidade perante a si mesma. O que significa trair pra você?
--- Fui enganada... Pensei que estávamos correndo em direção a objetivos em comum, e hoje acordo sabendo que tudo foi uma mentira, um engano, e que nos braços e na boca de outra pessoa ele se sente melhor... Fiquei fora do eixo completamente. --- voltou a abaixar a cabeça, suas mãos estavam tremendo. --- Acreditei em respeito.
--- Mas o respeito é a base de um relacionamento Maria Fernanda?
--- Pelo menos eu pensava que sim.
--- Talvez seja nesse pensar que esteja a raiz de tudo.
--- E não é? Respeito é a raiz!
--- O que quero dizer é que... E antes do respeito? O que é que vem antes dele? --- voltou lentamente para perto da janela. --- Para respeitarmos algo, antes temos de saber o porquê de respeitá-lo e o que implica realmente o ato respeitar. A ausência de compreensão sobre nosso próprio medo, nossos desejos e nossa própria solidão nos faz reduzir a nada procurando nos outros um respeito que nem nós conseguimos nos dar.
 --- Perdi muito tempo não perdi?
--- Não! Claro que não, e me delicio ao dizer que não... Talvez agora você não veja com tanta serenidade, mas esse é o momento mais marcante na vida de um ser humano, é o momento de largar o guarda chuva e se molhar nos pingos dessa tempestade chamada vida.
Um leve sorriso fez com que as covinhas de Maria Fernanda mostrassem para o mundo que a potência da transformação numa mulher se cria nos momentos de profunda melancolia.
--- Entendo, sei o que o você quer dizer, mas é difícil, pois só eu sei o quanto estou ferida e o quanto dói esse câncer incrustado em meu peito.
--- É você quem vai arrancar esse tumor... Pegue uma faca e tire-o do lugar, não existe o ontem nem o amanhã, antes de tudo só existe o agora... Valorizar a vida é valorizar a si antes de qualquer coisa. Divisões de certo e errado, feliz ou triste nos deixam estáticos a empreender visões de que o fim é o valor mais importante. Como poderíamos amar alguém que nem compreendemos? Todos nós temos ausências, é viável entender as nossas antes de nos machucar com as dos outros.
--- Eu quero amar de novo, estou num momento onde a raiva predomina. Tento me abster do ódio, mas parece que sou tomada de ira sempre que penso em me realinhar.
--- Sabe, esse ódio é o instinto do qual você mais fugiu em toda a sua vida... Potencializou tanto a capacidade de amar que o próprio ódio ficou resguardado.
--- E o que fazer agora que ele transborda em meu copo?
--- Deixe-o sair e tomar conta, lapide-o, deixe-o ser real e misturar-se com o amor, seja tudo o que se é em sua essência ou deixe de ser por completo...
Um choro frenético despencou fazendo com que Maria Fernanda levasse as mãos ao rosto.
--- Chore, chore e não sinta culpa e nem culpe os outros... Seja sua própria dor e vá fundo no abismo das desilusões, só assim verá a beleza que é oscilar e sentir o sabor da felicidade... Esse sabor só é degustado quando fazemos menção do que realmente é uma tristeza.
--- Como pude ser tão egoísta comigo? Como deixei minha vida sumir de minhas próprias mãos desse jeito?
--- Quando deixou de entender que a hostilidade do mundo é uma coisa natural. Quando achou que poderia ter o controle sobre sua própria natureza.

Maria Fernanda aos poucos foi deixando de soluçar nos prantos em que chegou. Levantou o rosto num gesto de ressurgimento apoiando as mãos nos braços da cadeira se inclinando rumo a janela perto do chefe.

--- Porque não disse tudo isso antes hein? --- Disse num leve brilho dos dentes a rir de um fenômeno que acabara de vivenciar. --- Obrigada.
Eles se abraçaram por um longo espaço de tempo que carimbava um momento que dificilmente acontece na vida das pessoas contemporâneas, pós modernas, e Maria Fernanda beijou o canto dos lábios do chefe.
--- Obrigada mesmo.
--- Não é necessária a gratidão Fê.
--- Mas obrigada por me resgatar... 



Alguns meses depois daquele desabafo o chefe entrava num restaurante na zona sul de São Paulo, quando viu Maria Fernanda sentada com mais duas pessoas em uma das mesas. Ela o avistou e acenou para que fosse até lá.
--- Olá Fê, tudo bem?
--- Tudo sim, esses são Valdir e Priscila, aqueles dos quais conversamos naquela vez, você se lembra?
--- Claro que me lembro, como poderia me esquecer? Você está noiva novamente?!
--- Não, simplesmente amigos!  Em todas as nossas vastidões.--- 
Uma leve gargalhada mostrou a outra face da Fênix.


Fernando Ribeiro (Sinnentleerten)




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