terça-feira, 12 de junho de 2012

Objetos e Adjetivos


Ela saiu atrasada, mal teve tempo de fazer maquiagem e comer algo.

Garoava e fazia frio, e o trânsito estava intenso. A velocidade dos dias estava fazendo a vida sempre igual. Trabalho, faculdade... Tudo se repetia com as mesmas cobranças, os mesmos caminhos, as mesmas alegrias e preocupações.
Independente, vinte e oito anos e algo estava faltando. Alguma coisa no vácuo dos compromissos incomodava seu reflexo no espelho dos elevadores ultimamente. Não era beleza, nem problemas de relacionamento com pessoas.

Conforme todas as revistas famosas que acompanhava, palestras que assistia, filmes e cultura que absorvia, essa insatisfação diária era tratada como normal para uma mulher do século XXI. Estar dentro de um ambiente balizado e polarizado em desejos e satisfações traria conseqüentemente na linha do senso comum certo grau de desconforto, e isso seria normal.

Era assim que até então Carla interpretava, não era necessário pensar muito, bastava ser bem resolvida, sexy e expansiva, pois tudo isso sendo bem feito e organizado lhe valia benevolências alheia e boa agradabilidade social. O velho medo feminino de sentir-se reprovada e rejeitada não era até então um demônio presente que acompanhava seus dias.

Chegou, pediu um cappuccino, ligou seu notebook, imprimiu um relatório e seguiu rapidamente para a sala de reuniões onde outros colegas lhe esperavam. Aquilo não era problema, lidava bem com a rotina profissional; sempre simpática e técnica conseguia resolver equações e criar soluções com facilidade tamanha atraindo admiração na empresa onde executava um cargo gerencial.
Uma hora de reunião e todos estavam satisfeitos. Elogios e tapinhas nas costas estavam consolidados, garantidos.
No almoço alguma coisa leve, uma dieta balanceada... Não sabia bem o porquê de estar dentro de um regime alimentar, mas seguia a risca, na academia era bem vista pelos instrutores com seu belo corpo e sua lealdade aos horários.
Suas noites eram com os amigos, os finais de semanas bem aproveitados, muitas viagens, muitos passeios.
Não havia muitas outras coisas a se desejar, materialmente sua vida parecia bem resolvida. Qualquer um invejava uma mulher como ela, morena de cabelos lisos, olhos castanhos, pele clara como a neve cheia de conquistas, charmes e estilo que por onde passava despertava os olhares masculinos.

É lógico que despertava muito mais interesse de invejosas que não tinham aquele pecado escancarado em beleza, dinheiro e atitude. Muito se esperava dela, muito se cobrava dela, se sabia que com ela as coisas andavam, aconteciam. Sua presença era a ação em pessoa.

Mas no silêncio de seu quarto alguma coisa sempre vinha incomodar...
Era noiva em um relacionamento de cinco anos com uma interação estável, amigável e fiel... Com planos  de casamento, de se ter filhos... As coisas estavam bem encaminhadas. Mas o incômodo a cada dia tomava um espaço mais bem definido em suas noites. Primeiro era fácil... Assistir televisão quando a insônia aparecesse foi uma solução imediata, mas no decorrer dos últimos dias percebia que as colorações de tudo estavam começando a se desfazer.

Era muito fácil para ela dar conta de tudo. A praticidade em lidar com sua vida lhe trazia certa sensação no fim das contas de que os riscos não existiam para si de forma consistente, e que uma vida sem riscos era uma vida sem emoções claras e verdadeiras. Onde estariam as culpas, os dramas, as tramas que via nos filmes e nas peças de teatro?

A servidão de seu noivo frente os caprichos e valores da “cidade” foi algo que em primeiro momento chamou sua atenção positivamente, foi até um dos motivos pelos quais se atraiu por ele. Um bom exemplo a se apresentar aos pais, família e amigos... Mas a falta de incômodo e a inalternância de humor daquele homem estava sendo observada diferentemente por ela agora, por outro prisma onde tudo que parecia acomodação lhe incomodava e a levava a sentir asco, náusea.

Era estranho, percebia a desassociação de suas particularidades antes bem resolvidas, e que agora em noites solitárias começava a pensar em como tudo pudera ser tão simples, tão pragmático... Tudo muito superficial.

Certo dia acordou numa manhã de fim de semana, eram sete horas e lá fora o sol estava brilhante. Mas um grande peso sobre seus ombros a fazia sentir a gravidade de sua massa corpórea mais sensivelmente. Olhou na mesa de jantar uma cesta de flores. Lembrou-se da noite anterior em que recebera elas no trabalho. Todos viram e a parabenizaram naquele momento. Era o pedido de casamento. Sim, o pedido de casamento definitivo que seu noivo planejara fazer da forma mais especial que sua cabecinha de bom rapaz poderia planejar.
Na hora ela não foi capaz de chorar. Ela que sempre fora emotiva e sensível naquele momento simplesmente não fora capaz de sentir nada. Com desgosto nos olhos leu o bilhete em voz baixa.

Depois daquele dissabor que não sabia muito bem a origem foi enfim para casa, olhou seu celular com vinte e cinco ligações perdidas. Não as atendeu, sabia que eram das mesmas pessoas de sempre, seus pais, irmãos, amigos e noivo.
Deitou e dormiu com a mesma roupa que carregava no corpo. Sonhou... E em seu sonho havia flores e árvores, frutas coloridas, arcos Iris que no fim perdiam vida caindo ao chão dando lugar ao negro noturno. Um sonho simples que se sucedia em slow-motion... Ao olhar as flores na mesa pôde então perceber que aquele incômodo que a visitara nos últimos tempos foi então capaz de borrar a verdade das coisas que mais dava crédito. Sim, foi capaz de borrar as formas daquele amor tão invejado pelos outros, de suas relações tão firmadas em valores alegres e felizes.

Saiu na sacada de seu apartamento que se situava no sétimo andar de um prédio no bairro do Itaim Bibi, tentou respirar um pouco mais fundo a procura de tempero que pudesse sazonar seu humor. Era nítido a impossibilidade de remontar as coisas como eram. Seu interesse pelo trabalho e pelas banalidades comuns já não era o mesmo. Não havia mais sentido. Tudo era muito explicado, muito certo, assim como era a concreticidade das contas para pagar que chegam todo mês as casas sabendo os endereços de cor.

Decidiu que esse fim de semana não sairia, não veria ninguém e que pensaria com mais afinco nas emoções alteradas que estava sentindo. Tentaria reajustar suas prioridades e voltar a ser aquela mulher de antes, comprometida e certa das coisas como sempre fora.

E foi assim que tentou fazer. Pensou, ouviu músicas, leu coisas relacionadas à astrologia e psicanálise na internet, achou algumas respostas, mas que não se encaixavam muito bem a sua condição, mas era o que podia pescar do mundo no momento. Ali ela começava finalmente a perceber que o mundo só é o mundo quando não precisamos dele necessariamente, pois quando necessitamos um pouco mais ele nos abandona. Abandona-nos em nossa solidão, em nossas angústias, fadados a nutrir em nós mesmos maneiras de arrumar aquilo que ninguém mais poderia fazer por nós.

Será que as pessoas gostariam dela agora? Agora que não conseguia mais estampar o sorriso no rosto, alguém a reconheceria como a mulher de antes?

Não! Chegou à conclusão de que não iriam gostar e não reconheceriam nela alguém merecedor de suas conquistas e vitórias. Esse medo que sentia da reprovação era o que mais assustava no meio disso tudo.

Foi nessa hora que percebeu não ter amigos... Colegas próximos sim, mas amigos não... Não seria capaz de se abrir com ninguém, expor sua nova condição, seu desprazer perante as relações mesmo sendo alguém cheia de conquistas e premiações; conquistas e premiações tais tão buscadas por todos que a rodeava.

De repente não mais se via mãe, nem esposa... Não se via mais ao lado de seu noivo mesmo sendo um homem tão bom para ela e tão querido por todos. De repente não se via mais cheia de objetivos e sonhos...

Dormiu o sábado inteiro em profunda letargia, e no domingo de tarde saiu a pé andando pelas ruas da zona sul, seguia sem rumo... Parava em alguns viadutos observando o trânsito ao redor, as pessoas em seus caminhos, seus lazeres, programas e trabalhos. Via a distância que existia entre os vendedores de artesanato e os compradores que simplesmente viviam seu entretenimento naquele momento. Parecia que as relações eram moldadas, que havia interesses invisíveis por trás das trocas, por trás das palavras... Por trás do dinheiro.

Alguns homens chegaram a mexer com ela dizendo malícias, mas seu abismo não a deixou ouvir... O que poderia vir depois? O que faria dessa forma? Como iria trabalhar? Dar continuidade em seus estudos? Era uma doença? Alguma disfunção psicológica? Muitas questões pairavam sobre sua cabeça sem respostas.

Lembrava então de algo que sua avó falara quando ainda era nova. Dizia certa vez que, existia muito mais por trás do coração de uma mulher do que há por trás de estrelas ascendentes. Nunca entendera muito bem essas palavras, mas de alguma forma conseguiu perceber o quão próximo isso conflitava com sua metafísica hoje tão abalada.

De frente para uma praça movimentada colocou as mãos no bolso em busca do celular, então percebeu que não o levara junto de si quando saiu. Afinal não achou problema, não queria falar com ninguém. Devia ser umas duas e meia da tarde e tinha ainda bastante tempo pela frente. Se não estivesse disposta no dia seguinte não iria trabalhar, era só avisar que não estava bem de saúde.

Andou mais um pouco e se interessou por um sebo que vendia livros antigos na região da Ana Rosa; entrou... Sapeou pelos corredores, o lugar era grande. Então perguntou a um moço que mexia em algumas revistas se ele sabia onde estavam os livros de Jane Austen. Era uma autora muito presente em seus primeiros anos na faculdade de gestão em Rh. Ele a direcionou e aproveitou dizendo que gostava de Jane Austen, que tinha lido uns dois livros e assistido alguns filmes que foram adaptados.

Assim ela o olhou nos olhos, percebeu que aquilo era um pretexto para um inicio de assunto e respondeu: “Legal”. Seguiu secamente para o corredor indicado dizendo obrigada.

--- Você é sempre assim?

Ela olhou para trás e novamente aquele moço estava falando com ela. Meio perdida, concluiu em sua problemática que aquele homem com cara de garoto parecia muito atirado.

--- Não, não sou assim... Mas afinal o que você quer dizer com “assim”? --- Perguntou confusa.

--- Sei lá, você me perguntou onde ficavam os livros da Jane Austen, e simplesmente saiu andando.

--- Eu não saí andando, eu disse obrigada e segui meu caminho. --- Respondeu Carla em tom irônico --- Olha, eu não estou muito bem, pode me deixar quietinha por gentileza?

--- Eu posso te deixar quietinha moça, mas poderia ao menos dizer seu nome? Seria o mínimo.

--- Carla, meu nome é Carla, está bem agora? Ficou satisfeito?

--- Hum, então Carla, o que trás você ao meu estabelecimento numa tarde monótona de domingo?

Ela se espantou, aquele semblante jovem não podia ser de um dono de sebo que vendia livros.

--- Seu estabelecimento? Nossa! Desculpe, não sabia que você era o dono.

--- Quer dizer então que se eu não fosse o dono não receberia as desculpas? --- Com um sorriso no canto da boca o insistente rapaz conseguiu finalmente atrair a atenção de Carla.

Sem jeito ela disse --- Não, não! Ai me desculpe, mas é que hoje não estou mesmo num bom dia.

--- Tudo bem Carla, eu só estava tentando ser solicito com uma cliente.

--- Eu entendo, acabei sendo injusta... Poxa qual é o seu nome? --- Ela perguntou para amenizar a falta de jeito.

--- Carlos --- deu risada --- Que coincidência não é mesmo?

--- Bastante --- Carla disse sorrindo --- Olha Carlos, obrigada pela informação e desculpe minha má educação.

--- Aceitarei sem nenhum problema, estamos fechando a loja em dez minutos --- aproveitando perguntou --- E você está sozinha? Poderíamos consertar isso com um café na padaria da esquina, o que acha? Está com muita pressa?

--- Acho que não seria uma boa idéia, uma companhia como a minha não seria das mais agradáveis, só eu sei a chata que estou hoje.

--- Não tem problema, não estou interessado se você é chata ou não --- risos --- Então, vamos?

Carla pensou um pouco, aquilo era bem confuso, sua mente estava em outros lugares, em outras situações e simplesmente um cara estranho estava querendo tomar um café... Mas alguma coisa lhe fez aceitar e logo respondeu --- Vamos então, te devo o pagamento de minhas desculpas --- Disse com um sorriso amarelo --- Vou te esperar lá fora, na hora que você sair me cutuque, pois sou ruim para guardar fisionomias.

--- Ok, sem problemas --- Carlos seguiu seu rumo.  

Assim, enquanto ela escolhia um livro para levar ele preparava para fechar.
Já fora da loja, na calçada quando se encontraram ele observou o livro que ela escolhera e perguntou:

--- Persuasão é uma obra dela que não li.

--- Eu também não. Achei o nome atrativo.

--- Entendi.

Sentaram-se numa mesa na calçada da padaria, ele pediu os cafés e se entreolharam por um instante. Um silêncio de mais ou menos dez segundos foi o suficiente para que de repente a mão de Carla suasse um bocado. Sentiu nervoso, não sabia o porquê, talvez por estar ali conversando com um cara estranho, dono de um sebo e que inventara uma desculpa esfarrapada para conseguir aquele momento ao lado dela. Uma situação muito fora de contexto dentro de um momento muito mais fora de contexto ainda qual era o que ela estava vivenciando.

--- Então... Por que disse que está num mal dia? --- O rapaz questionou.

--- Ah, é uma longa história... Só acordei de mal humor.

--- Entendi, são coisas de adulto né. Dá até saudade de nossa adolescência quando nos sentimos assim. Você não sente? --- Carlos parecia bastante familiarizado com o local.

--- Até que não sinto não, minha adolescência foi um pouco complicada. Passei por situações que me obrigaram a amadurecer antes do tempo. Sinceramente prefiro minha vida hoje --- Observava os olhos de Carlos, castanhos, fechados... Um olhar malicioso.

--- Nossa... Senti uma lembrança ácida, é isso? Não curte falar dessa época né?

 --- Então, não é que eu não goste de falar, mas é que não tem nada de bom para falar dessa época.

--- Entendi. É tão ruim assim?

--- Não é tão ruim. Foi complicado, apenas isso ---- Carla tentou mudar o rumo da conversa --- E você, está num bom dia?

--- Só sou um pouco bravo. --- Mais uma vez um sorriso no canto dos lábios se fez presente no rosto de Carlos.

--- Bravo?!

--- Isso, um pouco bravo.

--- Tenho medo de gente brava, eu choro hein. --- A principio ela não parecia muito confortável com aquilo. Um domingo diferente dos quais estava acostumada, onde ficava com seus amigos e parentes conversando trivialidades. Mas Carlos estava longe do que poderia chamar normalmente de boa companhia.

O garçom trouxe os cafés e a conversa teve uma pequena pausa.

--- Não diria bravo. Diria niilista --- Disse Carlos com a mão direita sob o queixo e a esquerda mexendo o açúcar no café; olhou-a e perguntou --- Soa mais leve dessa forma?

--- Não.

--- Bom. Então talvez não tenha jeito de suavizar minha personalidade nem escolhendo as palavras mais adequadas.

--- Mas niislista não é uma palavra muito adequada --- Afirmou Carla.

--- Depende muito do grau de chatice de quem ouve --- Deram risadas juntos nessa hora.

--- Bom. Eu estou chata hoje. Acho que estamos empatados.

--- É, parece ser chata mesmo.

---  Na verdade sou muito. --- Os gestos das mãos de Carla formaram um circulo para dar significância ao tamanho de sua chatice.

--- Chata com o que? Diga-me, estou curioso.

--- Sou um pouco impaciente, um pouco exigente. --- Deu uma pausa --- Gosto das coisas certas, detesto coisas erradas e sou meio quadrada também.

--- Na verdade você usou a palavra “chata” para encobrir uma série de valores que você enxerga que tem.

--- Não sei se são valores, mas são sempre meio que criticados pelas pessoas que fazem parte do meu convívio.

Carlos refletiu um bocado, deu um gole em seu café e tentou substancializar mais a conversa.

--- Se são coisas que você preza, então são valores. Mas esse negócio de coisas certas e coisas erradas são muito relativos, varia muito de pessoa para pessoa. E quando tentamos dizer ou impor aquilo que julgamos como certo, é óbvio que acabamos encontrando certos conflitos.

Carla refletiu e logo respondeu.

--- Ah! Mas não imponho nada aos outros, eu simplesmente não faço. Só isso.

--- Não faz o que? --- Carlos indagou.

--- As coisas que considero erradas ou pouco saudáveis. Mas não critico quem faz.

--- Tipo drogas, vícios e atitudes? --- Carlos olhava nos olhos dispersos de Carla.

--- Sim. Isso mesmo.

--- Então você não é uma pessoa muito empírica né?

--- De certa forma até que sou com relacionamentos interpessoais, mas para  outras coisas tenho minhas próprias convicções e na maioria das vezes eu aprendi com os erros de pessoas próximas...

--- Você é uma, poderíamos dizer, hmmm, “politicamente correta”?

--- Não diria politicamente correta... Mas tenho meus preceitos bem definidos.

Mais uns segundos de silêncio se fez no momento em que o garçom chegou para retirar as xícaras. Ao final, Carlos continuou a troca de idéias.

--- Não acredito muito nesse papo de aprender com os erros dos próximos. Às vezes, o próximo diante de uma dificuldade foi fraco e nos passa certa imagem de que a experiência em si foi ruim, porém pode ser que outra pessoa no lugar daquele que enfrentou tal dificuldade consiga sair-se melhor e nem sentir aquilo como mal, mas sim como aprendizado ou coisa do tipo.

Ela estava achando estranho um rapaz com aparência tão nova ter frases tão bem construídas, conseguindo fazer com que até esquecesse um pouco do drama ao qual estava passando nos últimos dias.

--- Sim Carlos, só que tem coisas que a meu ver são muito obvias no sentido de que se eu não me ponderar no fim poderá dar algo errado. E quando tenho esse sentimento em relação a algo, eu não faço. Simples assim --- No fim deu um sorriso piscando o olho esquerdo.

--- E você enxerga isso como virtude de sua parte?

--- Não sei, é difícil falar... Sou assim, é da minha personalidade. Aprendi e decidi o que é bom e o que é ruim pra mim.

--- Hum, entendi... Tipo assim, eu que sou homossexual, sei o que é bom ou ruim pra mim?

Em meio a risos Carla respondeu --- Mais ou menos isso. Mas acho que você não tem cara de homossexual, mas sim de pegadorzinho barato de mulheres fáceis.

--- E agora que você sabe que sou homossexual, muda sua perspectiva sobre a minha pessoa?

--- Não, continuo achando que você tem cara de pegador.

Aquela conversa realmente estava fazendo a cabeça de Carla trabalhar melhor do que até pouco antes de entrar naquele estabelecimento onde trabalhava Carlos. Talvez se tivesse num momento normal de sua vida, em sua rotina fugaz e delineada, com certeza não estaria ali, nem sequer daria trela a alguém que simplesmente lhe ofereceu um café. Mas tudo se juntou, seus questionamentos sobre sua vida unindo-se com  seu deslocamento perante aos ambientes tanto nas ruas, trabalho e em casa... E de repente aquela conversa era a melhor coisa que poderia estar acontecendo.

--- Nossa! Realmente você é convicta das coisas. --- Carlos parecia não cansar de caçar ainda mais palavras para que aquela conversa não acabasse.

--- Mas ter cara não significa que você é. Já ouviu falar que nem tudo o que parece é? E acho que você não parece gay.
  
--- Não pareço gay, pareço pegador com cara de safado. É isso? --- Carlos disfarçou palhaçadamente uma carinha de triste.

--- É, é isso mesmo!

--- E se eu for um pegador com cara de safado realmente? Você teria preconceito em fazer amizade comigo?

--- Nenhum, por mim tudo bem, continuaria sendo sua amiga. --- Carla terminou a frase rindo.

--- Hum, menos mal, achei que iria me abandonar.

--- Jamais abandonaria alguém simplesmente por achar que é alguma coisa, não sou nada preconceituosa.

--- Sei, vou fingir que acredito que não toma atitudes parciais por pensar certas coisas de certas pessoas.

--- Pode acreditar Carlos, nisso eu sou íntegra.

--- Mas acho que tudo no fim das contas acaba dependendo dos interesses, não é mesmo? --- O olhar do rapaz desafiava Carla, se via provocada a pensar, refletir, a calcular suas respostas.

--- Ah sim, agora você tocou num ponto importante.

--- E porque é um ponto importante?

--- Porque se você for o pegador que eu preconceituo que você seja e estiver querendo me pegar, pode ter certeza que não vai ter nenhuma chance --- Em meio a risadas ela ainda completou --- mas poderemos ser amigos.

Com o braço direito apoiado na mesa e a mão esquerda mexendo no paliteiro, Carlos absorveu aquele comentário com um olhar sério --- Está vendo porque é bom ser homossexual.

--- Pelo menos não tem riscos --- Carla sentiu que tinha conseguido desestabilizar as intenções de Carlos.

--- Eu não ligo de correr riscos. O grande problema é só as contradições.

--- Entendi --- Ela respondeu mesmo sem ter entendido realmente a colocação.

--- Entendeu nada. Olha só “Senhorita Não Preconceituosa” – Carlos se expressava com voz baixa e firme --- Você está aí achando que posso ser um pegador barato querendo te pegar ou querendo ser simplesmente seu amigo, toda cheia de convicções, preocupada em mostrar a mim que não terei chances contigo se tratá-la como um mero objeto. E de repente posso ser um simples poeta perdido no caos do espaço social fazendo poesia de tudo que eu vivo, penso e imagino, buscando em uma conversa simples vivenciar o poder da linguagem, das idéias sem nenhuma pretensão maior do que o benefício do diálogo, do experimento.

--- Mas eu não acho que você  quer me pegar! --- Carla agora se via desconcertada --- Acredito em amizades entre homem e mulher, não sou tão prepotente a tal ponto de achar que qualquer cara que me fala oi pode estar afim de mim. Se eu achasse isso já nem falava com você.

Ela deu uma pausa, viu a hora no relógio dentro da padaria e voltando os olhos no semblante de Carlos, disse --- Isso que você falou por último foi profundo.

--- Você achou profundo? Saiba que esse é meu pensamento por trás da carcaça de “pegador”. E não deixo qualquer um ter acesso facilmente. E olha, sei que você sabe um monte de coisas, porém eu sei também como é difícil para ti ver que homens se aproximam simplesmente por banalidade casual e por interesses machistas, muitas vezes vazios...

--- Sou privilegiada então, é isso? --- Carla mergulhava nas palavras que ele dizia, sentia profundidade e gostava daquele momento. Não sabia se ele era profundo ou se ela estava propensa a sentir as circunstâncias com mais intensidade --- Sim, noventa por cento dos homens se aproximam por isso mesmo. Mas ainda acredito que alguns homens possam querer ser meus amigos simplesmente...

--- Não sei se eu diria privilegiada, algumas pessoas sabem que existe algo por trás dessa carcacinha feia aqui --- O sorriso no canto dos lábios de Carlos era inconscientemente a marca da qual fazia Carla vê-lo mesmo com tanta sabedoria como um mero galanteador de quinta --- Lógico que muitos querem ser seu amigo, mas é perceptível já logo de cara que você fica numa certa defensiva, ou seja, acredita em amizade, mas já tem idéia do quão movido por interesses são os homens, e isso é engraçado..

--- Bom, então eu hoje faço parte de algumas pessoas que sabem que tem algo por trás dessa carcacinha e isso eu considero com sendo  algo relativamente bom --- No meio dessa frase ela o olhou nos olhos e arriscou responder com seriedade --- Sim, sou um pouco desconfiada, mas é porque já quebrei muito a cara com os seres humanos.

--- Digamos que você não sabe ainda muita coisa sobre mim, a não ser que você tenha alguma habilidade psicanalítica ou algo parecido. Mas você é alguém que sinto não precisar me esconder por trás da carcaça, não vejo motivo pra isso --- Ele levantou a mão para chamar novamente o garçom, e continuou --- Acho que todos quebramos a cara com os seres humanos em certo momento da vida, uns ficam  mais traumatizados e outros em contrapartida mais fortes, é relativo. E você parece bastante desconfiada realmente. Mas forte, eu ainda não sei.

--- Realmente não sei quase nada a seu respeito, mas acho bom que você se sinta assim a meu respeito --- Nesse momento o garçom chegou para atender ao chamado de Carlos que solicitou o cardápio, na saída do homem Carla continuou --- E é que verdade podemos ficar traumatizados ou fortes, e acho que comigo acabou  sendo um misto dos dois. Eu fiquei mais forte, mas também mais desconfiada --- Com uma leve risada completou --- Eu tento ser forte...

--- Às vezes para uma mulher não é necessário ser forte o tempo todo, pois acaba perdendo aquele brilho da fragilidade.

O garçom chegou com o cardápio e Carlos pediu uma empada de palmito, Carla disse que estava sem fome e que só iria querer um suco de manga.

Enquanto o garçom retirava a carta ela olhava Carlos, um cara com pinta de garoto aparentando estar habituado àquele tipo de situação e apresentando habilidade em colher informações com facilidade, seus gestos eram de um homem maduro e suas percepções sólidas, mas algo no seu olhar indicava sarcasmo, a fazia ter dúvida sobre sua personalidade. Ela tentava tirar alguma conclusão com sua formação em gestão de Rh observando os trejeitos, mas o movimento de seu corpo só delineava verdade, firmeza e sustentação em tudo o que falava e perguntava. O único mistério naquele rapaz realmente se encontrava em seu olhar.

--- Porque que é bom que eu me sinta confortável diante de você? --- Carlos voltou um pouco no assunto de antes --- Você se diz tão perto da fragilidade tentando ser forte.

--- Também não sou tão frágil assim, é que quando falamos de nós mesmos damos ênfase às coisas com mais notoriedade --- Deu uma pequena pausa --- E sei lá, só é bom saber que alguém que nem conheço direito me acha... Digamos... Confiável.

--- Não é tão frágil? Hum... Não sei hein --- Mais uma vez aquele sorriso confundia Carla --- Você se sente uma mulher confiável?

--- Sim, me sinto. Pelo menos nunca decepcionei ninguém nesse sentido. Tenho uma convicção que é a de que se for para alguém ser magoado, que este alguém seja eu... Melhor que me magoem... Pois se eu magoar alguém nunca conseguiria me perdoar... Às vezes é mais fácil perdoar os outros do que a nós mesmos.

--- Que dó --- Carlos riu daquele mar de culpas ingênuas --- Mas vai! Por trás de todo mar de fragilidade e sensibilidade  de uma mulher existe certa quantia de maldade... Ou não?

--- Pode até ser, mas a maldade mesmo sendo intrínseca a gente tem que saber doutrinar.

--- Mas olha que tem mulher que pega gosto pela coisa... Ficam maldosinhas inatas

--- Parece bem entendido quando o assunto é mulher --- Ela olhou-o com afinco --- Mas ter um pouco de maldade nos pensamentos e ser maldosa é bem diferente.

O garçom serviu a empada e o suco enquanto Carlos olhava a hora no celular. Parecia não ter pressa de nada.

--- Desejar alguém em pensamento não é pecado ou só será se eu disser a quem eu desejo? --- Perguntou de uma forma repentina que assustou Carla.

--- Acho que sim --- Ela colocou a franja negra atrás das orelhas, pensou um pouco e disse --- A questão é que tem coisas que são instintivas do ser humano, não tem jeito, pois somos animais afinal. Mas em contrapartida somos racionais justamente para podermos controlar nossos impulsos e vigiar nossos pensamentos.

--- Olha só --- Carlos deu uma mordida em sua empada, mastigou, saboreou e olhando para o toldo marrom em cima de suas cabeças disse --- Refrear o desejo e a vontade que consome fazendo-nos arder em chamas, que nos faz dormir e sonhar com os cabelos, o cheiro, a voz... Tipo... Reprimir por essa perspectiva parece uma tarefa difícil dependendo da situação, não é?

--- Mas aí você já não está falando de um simples desejo. Você está se referindo a algo mais profundo, e isso acho que o ser humano ainda não aprendeu a controlar felizmente, pois no fim das contas isso dá um gosto especial pra vida! --- Ao fim dessa frase Carla percebeu que se exaltou um pouco em sua afirmação. Mas Carlos parecia cada vez mais dentro do assunto, interessado pelas respostas e opiniões que ela carregava dentro de si. Nunca antes alguém havia parado para pescar as coisas dentro de seu mundo, talvez por ser tão independente e ativa acabasse afastando os outros para mais distante de si. Talvez os outros e até mesmo seu noivo sentissem medo afinal, e isso era algo que Carlos parecia não sentir. E ela não se sentia intimidada com ele, sentia-se até incitada a pensar e formular respostas que dessem forma real àquele debate casual que começara sem nenhum compromisso.

--- Você seria capaz de separar um simples desejo de outro complexo e profundo? --- Carlos mais uma vez indagou repentinamente.

--- Sim... Pelo menos acho que sim --- A forma como Carlos perguntava a fazia responder que achava certas coisas que em outras situações com certeza afirmaria sem refugos --- Pois um simples desejo é passageiro, momento... Pele --- Disse “pele” quase a sussurrar --- Mas uma coisa mais profunda faz você ver detalhes, pensar... Faz o coração bater... A mão ficar fria... Dá um aperto estranho no peito e uma saudade quando se está longe, não vai embora da gente tão facilmente existindo toda uma sintonia que nos faz querer estar perto apenas...

--- Hum --- Carlos soltou esse som mastigando o último pedaço de sua empada que parecia realmente bem saborosa.

--- Como assim? – Carla não se contentou em falar tudo o que disse e Carlos simplesmente dizer “hum”.

--- Estou refletindo sobre a profundidade do que você disse, só isso.
  
--- Mas não foi profundo, é só o que eu penso.

--- Mas só existe profundidade porque é um pensamento.

--- Concordo com você --- Ela terminou de tomar seu suco de manga olhando no fundo do copo.

A tarde estava quase terminando, o relógio da padaria apontava cinco e meia. Carla não tinha compromisso, ou melhor, ela não fazia questão de nenhum compromisso. Fatigada com toda a rotina normativa de sua vida, todas as coisas agora pareciam fúteis e vazias. Estar ali conversando com Carlos não lhe incomodava nem um pouco como quando na terça-feira incomodou-se ao jantar com seu noivo. Todo aquele papo de empresa, de planejamento de viagens e futuro, tudo parecia fácil e sem complexidades ao lado dele e isso parecia algo muito ruim. Seu noivo não a conhecia, não mensurava seus medos, suas verdades e mentiras e muito menos seus limites. Refletia facilmente agora, percebia que desdenhava tudo o que era antigo e pré moldado. E o papo que ali levava naquela padaria dava mais ênfase a sua revolta interna. Carlos mesmo sendo alguém muito mais novo que seu noivo a fazia imaginar e falar coisas que ao lado de outras pessoas não conseguiria e não teria sequer indícios de começar a expressar algum dia.

--- Desejos... Acho que refreá-los só gera patologias --- Carlos disse mexendo com a mão direita na nuca observando um mendigo que passava ao lado deles na calçada --- Parece que quanto mais velhos ficamos mais patológicos nos desenhamos --- Ao final completou lançando seus olhos ao de Carla --- Cicatrizes...

--- Mas é aquela coisa. Tudo eu posso fazer, mas nem tudo me convém.

--- Também concordo com você, pois são lados da mesma moeda --- Carlos pediu a conta dizendo ao ar --- Você conclui as coisas com bastante facilidade...

Carla deu uma risada daquele comentário.

--- Sou prática, trabalho com Rh. Uso a lógica quando posso.

--- Mesmo tendo dificuldades de memorizar fisionomias? --- Ele se lembrou do comentário que ela fez no inicio da conversa ainda na frente do Sebo.

--- Verdade! Tenho memória volátil e isso é um problema grave --- Ela falou quase gargalhando --- Às vezes acham que sou mal educada.

--- Memória ou personalidade com certo teor volátil? É um problema dependendo apenas da perspectiva.

--- Mas quem falou da personalidade? --- Perguntou Carla ainda rindo --- Minha personalidade não é volátil, só a memória que às vezes falha. Vai dizer que a sua memória nunca falhou e que nunca esqueceu o nome e a fisionomia de alguém que conhecia?

--- Eu tenho uma memória excelente, gosto de observar detalhes --- Carlos afirmou sorrindo --- Eu só fiz uma perguntinha, Não afirmei. Acho que é bom ter alguma presença de volatilidade na personalidade, senão fica muito rígido, não é?

--- Você não tem cara de quem gosta de observar, mas sim de quem gosta de aprontar mesmo... Devia ser arteiro quando criança --- Carla queria provocar e tirar afinal do rapaz a informação que ela desde o início acreditava ser verdadeira, a de que ele estava apenas com aquela conversa tentando ser sedutor --- Bom eu já sou super distraída, acho que para a mulher isso ocorre por fases hormonais --- Risos --- No meu caso é só ansiedade mesmo.

--- Para aprontar com estilo é necessário ser um bom observador, não é mesmo? --- Ele disse com expressão séria pegando a conta das mãos do garçom.

Ela perguntou se queria ajuda para pagar, mas Carlos logo disse que tratava-se de um convite dele e que da próxima vez ela teria o prazer de bancar.

Ao solicitar a maquininha de débito completou com uma questão --- Você é ansiosa?

--- Eu, ansiosa?! Um pouco,  e dependendo da situação acabo sendo ainda mais.

--- Memória volátil, ansiosa e super distraída... Nossa!

--- Ai credo... Já sabe todos meus defeitos --- Ela tapou os olhos e colocou a língua pra fora fazendo careta.

--- E olha que esses foram os que você falou --- O sorriso no canto da boca de Carlos já não mais incomodava Carla.

--- Olha! Quer dizer então que você já achou mais?

--- Será? Não sou um observador que vai a busca dos defeitos dos meus “objetos” de pesquisa --- Carlos tocou novamente na palavra objeto nitidamente com a pretensão de provocar.

--- Sou um objeto de pesquisa pra você? --- Fez a pergunta secamente.

--- Tudo o que nos propomos a conhecer de certa forma é algo que estamos pesquisando... Você não gosta muito dessa palavra, né? --- Carlos perguntou rindo.

--- Não gosto mesmo --- Ela refletiu --- Hum, você está se propondo a me conhecer “de certa forma”?!

--- Não sei, estou? É meio subjetivo isso --- Carlos parecia dizer e responder as coisas com dualidade nas afirmações.

--- Mas é você que tem de saber.

--- Podemos ver isso tudo de um ponto de vista mais filosófico --- Carlos respirou e disse olhando nos olhos dela --- Sim, você é um objeto de pesquisa.

--- Você  é realmente bem profundo em suas colocações, mas não dá pra eu ser algo diferente de objeto? --- Carla fez essa pergunta com uma expressão insatisfatória.

--- Mas a palavra objeto só é vulgarizada quando utilizada por pessoas que não a instrumentalizam como sujeito de uma frase e sim como adjetivo --- Carlos dizia gesticulando com as duas mãos --- Uma coisa é alguém dizer que você (sujeito) é um objeto (adjetivo) simplesmente. E outra é alguém dizer que você é um objeto (sujeito) que carrega algo (adjetivo), um objeto com qualidades, defeitos, etc, etc, etc.

Que homem culto pensou Carla --- Eu sei de tudo isso... Mas prefiro que você queira me conhecer e ser meu amigo do que eu ser seu objeto de pesquisa --- Rindo completou com um piscar de olhos --- Não é uma boa idéia?

--- E não é isso que estamos fazendo?

--- Mas gosto mais nesta linguagem.

--- Sem dizer “objeto”?

--- é.

--- Já que te incomoda tanto assim, não digo mais então.

--- Aí sim, então fechou! Você é um garoto muito legal!

Nesse momento Carlos parecia mais pensativo, mas continuou a conversa.

--- Legal, culto, com cara de quem apronta... Agora foram também as coisas que você disse. Aliás, tudo é o que você diz e como você quer --- Risos.

--- Sim, sim --- Carla ficou um pouco desconcertada ---  Foi o que eu descobri até agora pelo menos.

 --- Você também é legal, inteligente... E tem uma carinha de quem apronta também --- Carlos tentou provocá-la.

--- Obrigada!  Eu sou bem bagunceira, faço amizade fácil, mas sou bem tranqüila em relação a sair de balada e essas coisas... Neste sentido sou bem devagar --- Sorriu e completou --- Mas você em compensação tem cara de baladeiro.

--- Como eu tinha dito você tem uma facilidade enorme para tirar conclusões --- Carlos gargalhou --- Eu também sou devagar para baladas e essa coisas... Gosto da noite sim, mas não faço amigos facilmente, preciso pegar certa confiança antes de dirigir um olhar, um cumprimento, um oi... Observar bastante.

--- Então eu errei? --- Carla estava bem confortável com seu novo amigo --- Poxa --- risos --- Quer dizer então que eu despertei certa confiança?

--- Não sei se errou, não gosto de fazer propagandas --- Fez uma pausa --- Sim, uma menina bem solicita e que carrega no olhar um brilho estranho despertando confiança... Pelo menos de minha parte despertou... Ou posso estar enganado?

--- Brilho estranho? Isso é bom? Não sei se pode estar enganado, mas acho que você tem de descobrir com o tempo --- Ela sorriu --- Não  vou fazer propaganda também.

--- Não sei se é bom ou se é ruim --- Olhavam-se preguiçosamente --- Você disse para não “pesquisar” você, como tirarei conclusões? Ainda por cima como eu, não fará propagandas... Então ficamos num beco sem saída! --- A ironia era Carlos em pessoa.

--- Como você é complexo!

--- Eu?!

--- É sim... Você gosta de pesquisar e eu acho isso formal demais pra usar com pessoas --- Carla mexia continuamente nos cabelos.

--- É forma de falar --- Carlos tocou a ponta do nariz --- Vício em ciências sociais --- Pensou um instante e buscou uma maneira mais informal de explicar o que representava aquele olhar --- Vamos lá... É um brilho estranho, não sei bem o que ele é, o que ele tem... Ele meio que fala, expressa. Você é falante, mas seus olhos dizem mais --- Olhando nos olhos de Carla perguntou --- Isso foi formal?

--- Não foi formal... Foi digamos interessante... Deixou-me sem graça

--- Não precisa ficar sem graça, é uma impressão como a que você teve de eu ter cara de quem apronta, como você mesma disse.

--- Mas poxa, você tem mesmo cara de quem vai à balada e pega todas --- Ela provocava e era sua vez de colocar um sorrisinho sarcástico no canto dos lábios vermelhos --- É que eu sou assim mesmo, às vezes fico tímida quando o assunto sou eu, mas é passageiro.

--- Preciso mudar essa minha imagem --- Carlos não via fim na troca de idéias --- Você não gosta de falar de você?

--- Às vezes, mas fico meio sem graça --- Ela apoiou os dois cotovelos na mesa e perguntou --- E você gosta de falar de si mesmo?

--- Como eu disse, não faço propagandas --- Observou um casal de idosos que compravam Wanderléia no balcão da padaria e continuou --- Mas respondo perguntas.

--- Interessante! Primeira pergunta: quantos anos você tem?

--- Vinte e cinco.

--- Imaginei isso mesmo --- Risos --- Tem cara de novinho.

--- E você? Tem vinte e dois?

--- Não! Tenho vinte e oito, faço vinte e nove agora em agosto.

--- E está me chamando de novinho?

--- Sim --- Carla gargalhou --- E não é?!

--- Estamos falando de idade? --- Carlos não saía de sua postura irônica e observadora, mas Carla estava bem tranqüila, não havia intimidação.

--- Até onde eu sei sim, por quê? --- Risos --- Vou explicar: Homens em geral demoram mais para demonstrar idade e às vezes também para amadurecer. Já uma mulher de quarenta anos aparenta mais que um homem de quarenta.

Carlos não entendeu muito bem a colocação.

--- Podemos interpretar como experiência também, sei lá. Eu não ligo para idade... Comumente gosto de amizades de pessoas mais velhas, não olho muito para características físicas de um modo geral... Como disse, gosto de detalhes que me façam chamar atenção num amigo, numa amiga, e tudo mais.

--- Ah, mas eu nem pensei nisso, falei apenas, pois acho a faixa dos vinte e poucos anos novinho... Eu também sou novinha e faço amizade com o pessoal mais velho em geral --- Ela refletiu sobre seu noivo ser sete anos mais velho e não ter nem um terço de discernimento de Carlos e que em duas horas mostrou-lhe muito mais até do que seu pai, um senhor arquiteto que só sabia falar de números, medidas e economia --- Na verdade as pessoas da minha idade me acham quadrada.

--- Quadradinha --- Carlos brincou --- Você faz amizade com todo mundo né, essa é que é a verdade, já deu pra perceber.

Seu dia mudou, por mais que seu passado estivesse denegrido dentro de si, Carla estava satisfeita. Com Carlos ali a sua frente se via numa posição de olhar as coisas por outro prisma, por outras perspectivas, sem tanta dor. É lógico que não sabia de onde ele vinha, que educação e instrução possuía, mas lhe transmitia segurança e certas emoções sensoriais que nunca tivera antes com ninguém num bate papo. E nem sequer havia dado um aperto de mão, um abraço, um beijo no rosto dele. Sem tocar e apenas com idéias sentiu uma conexão bem diferente, muito diferente do normal.

--- Respondi sua primeira pergunta --- Carlos alimentava com questões simples que iriam com certeza dar vazão a mais rumos na conversa, mais curiosidades e respostas --- Tem mais? Olha que não é todo dia que abro para perguntas.

--- Tenho sim --- Ela o olhou nos olhos ainda com os dois braços apoiados na mesa --- Por que me chamou para tomar um café?

Ele não pensou muito.

--- Chamei porque você foi mal educada.

--- Não foi por isso, minha má educação o afastaria e não o atrairia.

--- Chamei porque você entrou na loja sem saber muito bem onde estava, andou pelos corredores sem olhar direito pros livros e no fim veio até a minha pessoa pedir auxilio para achar as obras da Jane Austen, uma autora que eu curto.

--- Mas o que isso tudo que descreveu tem a ver? --- Carla estava realmente curiosa.

--- Eu a observei, te achei bonita, atraente... E seu olhar descompromissado, aéreo me chamou a atenção. É lógico que eu não iria até você, mas você veio até mim. E pelo seu gosto literário achei que poderia fazer amizade. Sua rudez no início foi só um muro que eu precisei pular e não foi muito difícil.

Ela se encabulou. Tanta observação, perspectiva e discernimento despendido a ela por alguém que nem perderia tempo reparando nas ruas em seu dia a dia. Mas tudo casou, sua crise ganhou forma com Carlos, sentiu desgosto ao ver uma cesta de flores e não mais desejou nada do que tinha, porém com toda aquela conversa ao seu lado naquela tarde pôde melhorar bastante. Mas não melhorara simplesmente por estar fugindo da realidade, mas sim por ter aberto os olhos e visto as coisas com um pouco mais de clareza e percebendo que dependendo de quem fosse --- E no caso Carlos --- Poderia sim sentir-se bem ao ser vista e comparada como um objeto, um objeto com adjetivos, parafraseado por alguém desapegado de mesquinharias classemedianas e com finesse em seus ditos. Um dono de Sebo simplesmente.

--- Eu preciso ir embora --- Carla disse impulsivamente --- Estou sentindo um pouco de frio, saí de casa sem blusa.

--- Eu te ofereceria a minha blusa, mas deixei lá no sebo. Você está com muita pressa?

--- Não, só preciso sair desse vento, posso pegar um resfriado.

Já eram seis da tarde e a noite que se desenhava realmente estava fria.

--- Então vamos voltar na loja, eu pego minha blusa pra ti. O que acha?

--- Não precisa Carlos, eu vou tranqüila.

--- Poxa, está sendo ingrata agora --- Ele voltava a mostrar seu sorriso irônico que confundia Carla --- Eu aceitei suas desculpas, não custa nada aceitar minha blusa, eu sentiria profunda culpa ao saber que ficou dodói por negligência de minha parte.

Ela pensou com um sorriso e aceitou finalmente. Eles se levantaram da mesa e seguiram. Ela então observou seu jeito de andar e de olhar as coisas enquanto se movimentava. Algo nele era diferente e lhe prendia a atenção. No fundo sabia que Carlos devia se tratar de um cara cheio de vícios e problemas como qualquer um, mas que em contrapartida tinha um pé adolescente dentro da realidade, atirado, intrometido e jeitoso... Filosófico. Nunca tinha conhecido alguém que utilizasse metade das palavras que ele utilizou na conversa que tiveram na padaria e que não fosse um nerd, um misantropo, estudante de direito ou um idiota qualquer mesmo. Todo mundo que estudava ciências sociais ou nutria gosto por esse tipo de literatura não lhe cheirava muito bem, pois em sua mente moldada nas diretrizes e valores do liberalismo sensacionalista (TV, rádio e jornal), onde tudo no fim seria crescer economicamente para usufruto da liberdade de aquisição de bens, a fazia entender tudo de forma utilitária lapidada pelo senso de caminhada existencial a passos largos em prol da felicidade e do bem comum, livre de amarras e sem percepções maiores do que as que integravam os próprios interesses.

Chegando ao Sebo entraram pela portinhola da esquerda, estava escuro. Carlos alterou um disjuntor e as luzes se acenderam. Ele foi ao fundo onde ficava o escritório e Carla caminhou por entre um dos corredores.

--- Como um garoto de vinte e cinco anos se tornou dono de um Sebo tão grande como esse? --- Ela questionou em voz alta e expansiva.

--- Herança de meu avô. Ele tem esse sebo desde a década de sessenta e ao morrer deixou para eu cuidar --- Ele logo pegou a blusa e voltou lentamente por outro corredor onde se localizavam os livros de geografia.

--- Ele faleceu faz tempo? --- Carla encontrava-se no setor de livros infanto juvenis.

--- Têm uns oito anos, e desde então eu cuido daqui. No começo meu pai me ajudava, mas logo consegui caminhar com minhas próprias pernas.

--- Entendi. E você lê todos esses livros?

--- Sinceramente não. Tem muita coisa aqui que só está a venda por que a massa absorve, como é o caso dos livros espíritas, autoajuda e Paulo Coelho.

--- E o que você lê então? Já percebi que gosta de ciências sociais --- Ela pegou o pequeno príncipe para folhear, leu-o quando estava na segunda série.

--- Eu leio clássicos como Flaubert, Maquiavel, Schopenhauer, Burke, Sartre e vago um bocadinho por antropologias e afins.

--- Hum, Strauss?!

--- Principalmente Strauss, Villas Boas, Darci Ribeiro... Esses são os principais.

--- Você tem a percepção do quão fora de contexto você se encontra? --- Carla nunca tinha visto alguém tão novo e tão interessado em assuntos universais e ao mesmo tempo com tanta facilidade para se comunicar com alguém como ela. Logo ela, que se via tão a frente de muitas outras, linda, inteligente, formada... E ele não tinha medo, não era como os outros que só elogiavam e a queriam por perto como um simples bibelô.

--- Como assim Carla?

--- Ah, tipo, todo mundo querendo ser rico, ter posses, adquirir bens e ser feliz com o mínimo de esforço possível, e você aqui nesse lugar antigo, lendo livros que quase ninguém lê.

--- Sim, tenho essa percepção. Mas será que sou eu o desenquadrado realmente? --- Sua voz era irônica, provocadora.

--- Como assim?

--- Será que eu que estou fora de contexto ou quem está nessa vibe que você citou é que se perde diante toda a imensidão do mundo, cada vez mais transformado, burocrático e resumido?

--- Vendo por esse lado eu concordo. Mas você entende que de primeiro momento você é estranho?

--- Claro que concordo, e nem luto contra isso. Não fujo da estranheza que posso causar nas pessoas como também não me entrego à estranheza que os outros me causam num primeiro momento.

--- E o que sobra? --- No momento em que ela fez essa última pergunta ele apareceu em seu corredor. Andando lentamente e a olhando nos olhos se aproximou.

--- Sobra a gente --- Ele sussurrou --- Sobra isso que estamos fazendo aqui. Idéias trocadas, paradigmas revistos, angústias renovadas e prazeres impulsivos.

Ela se espantou de repente com ele a sua frente, cara a cara... Não esperava por aquilo. Até então, mesmo irônico e sarcástico fora educado e formal, agora dissera coisas que por razões emotivas não conseguira entender direito. Ela baixou a cabeça, mexeu com seu tênis Puma direito no esquerdo, tentou olhá-lo novamente, mas encontrou dificuldade.

--- E pra você, o que sobra? --- Carlos perguntou sem se mexer com as duas mãos juntas atrás do corpo fixo.

--- Como assim o que sobra?

--- O que sobra? Simplesmente isso.

Carla titubeou, mexeu num livro, folheou outro rapidamente.

--- Pegou a blusa? --- Enfim ela questionou tentando sair daquele mal jeito em que se encontrou.

--- Sim peguei, mas só a entrego se me responder.

--- Sei lá Carlos. Sobra esse sebo aqui onde você trabalha, ou melhor, que você é dono e administra. Sobra uma experiência depois de nos tornarmos amiguinhos. Só isso --- Carla não conseguia esconder seu nervosismo.

--- Entendi, era só sua resposta que eu precisava --- Carlos entregou sua blusa nas mãos de Carla e saiu andando lentamente.

Desconcertada e confusa ela vestiu-a e seguiu junto dele até a porta para que pudessem se despedir e irem embora. Nesse momento ela disse para ele anotar o celular dela, porém Carlos tirou do bolso de sua calça um cartão onde se encontravam seu telefone e seu e-mail e disse que caso quisesse devolver a blusa era só entrar em contato ou ir até a loja. Obviamente que num instinto de preservação ela pensou em nunca mais vê-lo, que aquilo já tinha sido algo bem fora do comum e pediria a alguém que entregasse a blusa a ele.

Carlos abriu a porta e acenou cordialmente para que a moça saísse primeiro. Ao colocar o pé direito para fora Carla repentinamente sentiu um tranco em seu corpo que estava sendo puxado vorazmente pela mão direita de Carlos. Ela piscou e quando abriu os olhos estava de frente com ele, olho no olho, boca na boca, quase encostados... A respiração ofegante do rapaz a fez arrepiar inteira, a adrenalina tomava conta de seu corpo. Carlos fechou a porta com a mão esquerda e a encostou com força na parede ao lado da primeira estante e a beijou. Carla tentou oferecer resistência, mas a força com que segurou ela pelos braços a fez desistir e se entregar.

Beijaram-se de uma forma estranha, com força despudorada, ele passava as mãos por suas costas e ela ainda tinha os braços um tanto sem saber o que fazer. Carlos a pegou pelos cabelos e beijou seu pescoço, lambeu molhadamente sua orelha. Ao sentir o puxão em seus cabelos Carla foi à outra dimensão, seu corpo começou a suar e tremer compulsivamente.

Carlos tirou a blusa que havia lhe emprestado, os dois se entreolharam com olhos sedentos. Respiravam profundamente, e era perceptível a ação de seus pulmões que trabalhavam a todo vapor como se estivem correndo.

Carla o puxou --- Seu louco! O que você acha que eu sou? --- ele a segurou com força na cintura a virando de costas e contra a parede, mordendo sua nuca.

--- Gostosa! Você é minha gostosa!

Carla sentiu-se molhar, os dedos de Carlos começavam a vagar pelo seu corpo e sua barriga enquanto ela o segurava na cabeça, tremendo e gemendo suavemente. O botão de sua calça foi desprendido com a facilidade com que se abria um livro e Carlos aprofundou-se em sua exploração. Ao encontrar aquele líquido molhando seus dedos da mão direita então a puxou pelo cabelo com a mão esquerda trazendo seu rosto até o ponto em que pudesse visualizá-lo. Olharam-se e a expressão de Carla era nitidamente de prazer assustado, olhava para Carlos como uma figura mítica, excêntrica, pecadora.  

Ele sussurrou em seu ouvido --- Minha atenção, minhas palavras e meus toques mais sutis são a poesia --- Disse isso alisando suas costas, massageando seu pescoço e de repente puxou seus cabelos com tal força dizendo em voz baixa --- E isso é minha revolta, minha tragédia, minha filosofia mais vil.

Ela tentou se desprender, demorou um pouco até que conseguiu --- Quem é você afinal hein garoto?

Mordendo os lábios e andando lentamente em sua direção disse --- Sou seu pior pesadelo e a sua melhor escolha.

Ela o esperou... Novamente se abraçaram e Carlos a colocou lentamente no chão. Tirou sua roupa com extrema delicadeza e ao despir a última peça com olhos realmente safados passou a língua por cada parte de seu corpo, ora com força, ora suave se conectando misteriosamente com as partes mais sensíveis daquelas curvas brancas que se arrepiavam. Carla não sabia se fechava os olhos ou se observava a ação louca daquele rapaz insano, que se transformara de um mar profundo de sabedoria da padaria em um lobo instintivo e fugaz dentro daquele estabelecimento com livros antigos.

Ela não aguentava mais, precisava urgentemente ser penetrada pelos membros eretos de Carlos. Então após desvencilhar-se de seu controle masculino da situação ela o acariciou e lambeu o quanto pôde até o limite de seu desejo que clamava por penetração, não sustentava mais seu corpo ardente.




Ao fim ela acordou na segunda feira às onze horas da manhã atrasada para o trabalho, decidiu não ir.
Na sala observou em cima da mesa um livro de aforismos que Carlos havia lhe emprestado do filósofo Arthur Schopenhauer.


Folheou e na primeira página estava escrito:

“O desejo tem duas formas de te humilhar. Uma é você não realizar ele nunca e outra é deixar que você o realize”

Ela saiu na sacada, o dia estava frio. Mas sentia sua vida muito mais profunda e visceral do que quando no sábado olhou para as flores de seu ex noivo.




Fernando Ribeiro (Sinnentleerten)


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