quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Meio Sugestivo

Olhos pretos no relógio... Sexta feira; sete e meia de uma noite fria de agosto. Estou num balcão comprando uma passagem para Ribeirão Preto, cidade em que moram meus pais. O ônibus sairá as oito, então ainda dá tempo de tomar um refrigerante e comer um salgado qualquer. Ando e vejo pessoas circulando pela rodoviária movimentada por terminais de ônibus e uma estação de metrô, rostos cansados na evidência clara de um dia intenso de trabalho duro.
Chego à lanchonete, declinando-me ao buscar o cartão de débito nos bolsos de minha calça social, sou meio perdido com cartões, bilhete único, crachá de empresa... Então o acho no largo bolso de minha camisa azul. Me impacto frente meu sapato preto que precisa urgentemente ser encostado, mas pensando bem preciso juntar umas economias, pois não me sobra dinheiro para certos luxos e o que ganho serve contado para as contas e o aluguel, às vezes alguns livros também... Sou um colecionador de livros velhos, não sei se o sou por não ter condições de comprar livros novos ou se é um hobby realmente. Compro todos meus livros em sebos por aí.


Existem muitos sebos bons na cidade de São Paulo, livros velhos com vasto campo de assuntos empoeirados em gramáticas antigas... Sinto ânsia por leitura, anseio ler o tempo todo, me sinto mal quando numa noite fria como essa não tenha um livro pra ler durante a viagem; se bem que não daria mesmo, logo que sou vulnerável a luz fraca e meus olhos começariam a arder debaixo daquela luzinha cafajeste do ônibus.
São sete e quarenta e sete, e não terminei com minha empada de palmito, rapidamente sigo comendo até a plataforma seis onde será meu ponto de embarque, ponto esse que durante o dia foi o de muitas outras pessoas que partiram desse mesmo lugar. Agora, poucas pessoas estão na fila, creio que umas oito no máximo, mas me adianto de cabeça baixa sem a mínima intenção de contar. Jogo o papel no lixo instalado ao lado do banco de espera em que me sento com minha mochila velha sobre as pernas. Respiro observando ao redor... Um ambiente cinza; concretos e placas... Em outras plataformas outras filas, outros destinos. Pergunto-me: será que todos têm um destino? Será que todos têm alguém que os espera nos lugares que pretendem ir? Não sei; não há como saber, e perguntar para cada um seria inapropriado, uma utopia, afinal, não disponho de tempo e não há o hábito, não há a abertura, ainda mais em São Paulo... Ser hostilizado por nossa curiosidade é algo que faz com que  desistamos antes mesmo de pensar nas possibilidades de alguma coisa.
O barulho áspero da rodoviária faz com que a parte interna de minha orelha trema... Não sei o que acontece para ela tremer dessa maneira, pensei até em procurar no Google, mas sempre me esqueço. Será uma doença que dá indícios de seus sintomas sempre que estou em ambientes movimentados?... hmmm, isso acontece também quando estou trabalhando ou prestando atenção em algo que na verdade eu não queria estar prestando.
Meu ônibus chega lentamente e abre as portas, com seu barulho costumeiro que mais parece um esguicho de baleia subindo à superfície da água para dar cabo de sua respiração. Aos poucos as pessoas vão deixando as malas confiantemente no bagageiro do bicho gigante que ultrapassa linhas demarcadas entre os municípios. Entregam as passagens subindo a escada rumo aos seus lugares... Eu sigo, mas antes tenho de preencher meu número de RG na passagem, “putz...!” Me esqueci de fazer isso na hora que a comprei. Que cabeça a minha!
O motorista negro de traços fortes no rosto pergunta se quero deixar minha mochila lá embaixo, no bagageiro, e digo que “não... Não, não é preciso, não é necessário, é leve e não tem roupas, levarei comigo mesmo sem problemas”. Ele diz que tudo bem com uma cara embaraçada.
Dentro do ambiente invólucro ouço o barulho dos meus passos abafados pelo cheiro do estofado azul marinho, convidativo a uma viagem de cinco horas no mais absoluto torpor.
Sento na janela do lado esquerdo no antepenúltimo banco, o ônibus ainda encontra-se desligado com os passageiros silenciosos mexendo em alguns pertences, alguns com fones nos ouvidos ouvindo alguma rádio sintonizando a FM, ou até músicas baixadas na internet ou copiadas de amigos. Sinto vontade de ver o que eles realmente estão ouvindo... A curiosidade frente à rede em que vivo me esmaga. Os desenhos que me chegam aos olhos e não posso penetrar é como estar de frente a um imenso aquário de corais que não podemos tocar.
Submerso a escuridão do ônibus sinto certo desconforto no banco que me faz deslizar, pois minha calça social não prende no corpo.  Peno até achar um jeito de me firmar numa posição que não seja tão desconfortável. Quando paro de me mexer lembro-me do livro que terminei ontem, seu titulo é “Sobras de um ato falho”. Uma leitura arranhada, um tanto neurótica que em determinado momento o autor levanta a seguinte questão sobre a dimensão psicológica do personagem principal: “se sei que vou morrer, então porque eu vivo?”
Estranho, um garoto de dezenove anos não deveria sentir calafrios frente a essa parte do texto, mas sim nas linhas narrativas sobre o desejo do personagem que no meio da história encontrava na idéia amorosa que fazia de sua amada a verdade absoluta que dava sentido a todo seu passado, seu presente e seu futuro... Mas o que me instigou foi o questionamento sobre a morte vir só depois de uma decepção com a amada... Na rejeição...
Analisando, a morte afinal acabou sendo seu destino de qualquer maneira, ou seja; com sentido ou sem sentido ele morre no final... Morre sozinho, desesperado e chorando.
Foi forte a impressão. Vi-me na pele do personagem... O temor perante a morte vindo depois de desilusões cognitivas, o sentimento de impotência diante de um emaranhado social abstrato aos sentimentos depreciados pelo próprio ódio consigo mesmo... Daí, mais uma duvida: “será que essa impressão foi minha? Será que o que li me envolveu ou eu envolvi o que li? Não sei, existem coisas que não sei e existem coisas sobre mim que o mundo não sabe”... Sou novo ainda.
Um ônibus, rodas, motor... Máquina que nos levará e eu nem mensuro como ela funciona, não faço idéia, afinal nunca me apeguei em mecânica. Ali estão as saídas de emergência sinalizadas em vermelho... Toda uma lógica circunscrevendo as perspectivas.
Diante o silêncio dentro do ônibus vivenciado entre um pensamento e outro me lembro dos antigos amigos da escola, sempre contentes por aprenderem matemática, física, química, ansiosos por boas notas. Eles sabiam contar... Eu era péssimo, me esforçava, mas era péssimo talvez por não enxergar finalidade, como uma corrida que começa e termina no mesmo ponto. A recompensa, um número, uma nota, um sorriso, um presente, um abraço paternal... Bonito, belo e afável. Contemplável? Não sei.
Na janela do outro lado uma mulher de uns trinta e cinco anos senta-se com um livro na mão, um cabelo curto e enrolado preso por uma singela tiara que sinuosamente os jogam pra trás, um perfume doce adolescente que entrega essência ao ar abafado... Seus olhos fitando a luzinha sobre a cabeça. Acho que quer ler, mas a iluminação é tão fraca que seus braços morenos desistem de tatear o botãozinho de acionamento.
Será que vai para Ribeirão Preto apenas passar o fim de semana ou vai ficar por lá em definitivo? Seu olhar pensativo numa tensão nos ombros me deixam curioso.
Será que ela joga xadrez? Parece que sim, sua sobrancelha firme a faz aparentar uma pessoa racional... Não sei. São apenas impressões.
Penso o que qualquer outro moço faria aqui em meu lugar, o que observaria e o que imaginaria. Muitos nunca nem se quer viajaram de ônibus, mas sim em seus carros ou nos carros de seus pais, querendo coisas e coisas... Outros nunca nem sequer viajaram.
Como queremos coisas, não?!
Querer, querer e querer... Nosso coração quer oxigênio para bombear o sangue, nosso estomago quer comida para alinhar o organismo... Quero um lugar para liberar minha urina, putz! Mas o ônibus já saiu e nem vi, não tem banheiro aqui dentro!
O jeito então é segurar, teremos duas paradas no percurso até chegar ao destino. Qualquer coisa, falarei com o motorista e peço para fazer na estrada... RS iria ser engraçado.
Lá fora os carros com seus vidros fechados e filmados, ouvidos, olhos, sentidos e emoções controlando máquinas compradas a crédito... Cada um sintonizando uma rádio ou tocando CDs e DVDs comprados em barracas, de variados estilos falando de amor, traição, felicidade, Deus. Ritmos diferentes expressados na mesma sintonia, dando sentido a cada situação, a cada indivíduo ali dentro... Pais e filhos, chefes e empregados... Hierarquias e supressões... Vidas nossas condicionadas.
Idéias que substancializam a vida... Fios nas ruas e avenidas, muitos fios e muitas ruas e avenidas, dando pulsão a noite escura e a insônia de muitas pessoas... Quantas estão no banheiro se olhando no espelho pensando em dar fim à existência? Quantas estão querendo achar uma chance de existencializar o casulo em que habitam? Não sei... 
 A vida talvez seja um fio de teia, um grão de areia... Cansado, parado...
Na velocidade da estrada a 100 ou 120, não sei, vamos juntos, oito no máximo num espaço que refere a línguas, passados e promessas. Tudo que nos resta e tudo que acabou...
A cor dos sonhos, placas indicando a direção e o quanto falta pra chegar. Embarcando pra desembarcar... A garota ao meu lado dorme e eu contemplo teu sono profundo, pois ele é meu, posso palpá-lo e farejá-lo... Os carros lá fora iluminam minha estrada, meu cenário, meu abismo...
Durmo pensando... Um bocejo me engole.
O sono é um tenro presente que o meu corpo vem me oferecer...



Fernando Ribeiro (Sinnentleerten)

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